I)
Em tons de fogo, céu transfigurado
Enrola-se lento sobre a colina
Que escondida em suave neblina
Prende no olhar o brilho dourado.
Assim prossegue o dia aclamado
Últimos respiros de morfina
Cálculos certeiros que ditam a sina
Se cumprem no tempo já marcado.
Em cada hora: um canto escondido
Que o coração no relógio aprova
Sem receio de ser desmentido.
Na luz poente a esperança renova
Sem medo, pânico ou alarido
Assim a tarde passa: vida nova.
II)
Mesmas ruas: cheiro diferente
Cresce a sombra pelo canteiro
O dia insiste em ser mais inteiro
Crepúsculo germina: qual semente.
Nos jardins, dança flora tangente
Todo o vento se torna ceifeiro
A tinta da sombra cai do tinteiro
O movimento pulsa mais latente.
Mistura luz e sombra: harmonia
Tempo desliza pelos jardins
Reação pura, sem alquimia.
Sombras deslizam pelos confins
Todo o tempo se faz poesia
Mais que açúcar dos dias ruins.
III)
O sol derrama-se pela tela
Como um suspiro lento e certo
Ai, que o final já está mais perto
E as cores parecem aguarela.
Pinturas rupestres de luz singela
Nas ruas que já parecem deserto
Aquele horário que é incerto
Que se prolonga em sequela.
Nas paredes o fogo se reflete
Um quadro vivo em tons de carmesim
Instante breve que se repete.
Vemos o horizonte sem confim
Numa imagem que se intromete
Uma aparição: um serafim.
IV)
Recolhem-se os gestos peregrinos
O dia dobra o seu último salto
Os sinos cantam em sobressalto
Em ânsia de ter sonhos divinos.
Tempo que controla os destinos
Alarme cresce no silêncio incauto
A tarde expira num tom de basalto
Com sinos, destinos e desatinos.
No fim da tarde, aprende-se a escutar
Os badalos como notas incertas
As notas como convite a repousar.
Imagens vagas, memórias secretas
O som da paz, que vem devagar
Como vento pelas janelas abertas!
V)
O tempo escorre, como quimera
Na terra suspensa: um presságio
Promessa de chuva, um adágio
Que se revolta na atmosfera.
A chuva vertical que se apodera
Mais do que o mar no seu naufrágio
Rito de passagem sem pedágio
A terra respira o que o céu libera.
Frio e molhado pedaço de sol
Terror olfativo da liturgia
Que cobre a mente como lençol.
Cedem as águas no fim do dia
Nuvens e vento em fiel escol
Numa luz que lentamente sumia.
VI)
Corre um silêncio doce e pleno
Gritos contidos - pausa infinita -
No lume a lembrança crepita
Escorre em tempo calmo e ameno.
Palavras perdidas são veneno
Divinações plausíveis da desdita
Abraços presos que o amor recita
Conversas soltas pelo terreno.
Perdura tudo na amizade
Silêncio e som, boa-ventura
Essência pura: simplicidade.
A voz falha, a alma perdura
O tempo corre como saudade
Permanece tudo em quietura.
VII)
Tarde cede e cai sem sentir dor
Num grito perdido lentamente
Epopeia com incerto autor
Padece em si o sol poente.
O tempo repousa: grande terror
Medos de um passado presente
Alma perene: sagrado louvor
A noite planta a sua semente.
No fim a memória fica
Reflexos de vivência solta
Que o escuro desmistifica.
O dia passa e já não volta
A lembrança se intensifica
De sensações em reviravolta.
VIII)
Batem asas, ternas como sina
O voo no vazio do dia
A luz que suave se declina
Frio inerte que se erguia.
O crepúsculo prevê ruína
Da noite sem sombra de mestria
Quando o ego enfim inclina
Na alma do luar que rompia.
O canto que se faz inexistente
Zarpa a países quiméricos
Qual sono que planta a semente.
Entre céus, voos isotéricos
A noite traz o que é ausente
Perenes tormentos homéricos.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
Tarde/crepúsculo
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